Quando, em noites de Verão, uma digestão difícil ou inexplicável
mal-estar nos rouba o sono, assomamos à janela, deparando-se-nos um mundo
diferente - o mundo dos sons.
O ser humano, que todos somos, contacta com o mundo que
o rodeia, através dos cincos sentidos de que é dotado - vimos a
imensidão dos mares, ouvimos o canto das aves, cheiramos o aroma das
flores, saboreamos o paladar dos frutos, tacteamos o aveludado de uma
pétala de rosa.
Noite alta, solitariamente à janela, há sentidos que
não são estimulados. Refinam-se, então, os sentidos aptos em tal
situação - «sentimos», intensamente, os odores do renovo, em
maturação acelerada pela canícula diurna, prestes a ser colhido, em
perfeita simbiose com o acre da seiva dos pinheiros, «sangrando», da
incisão no tronco, para o púcaro que recolhe a resina - ouvimos, como
que ampliados, os pequenos ruídos, imperceptíveis durante a faina diurna
- o rolar da água nos penedos da ribeira, o cantar da cigarra, o coaxar
dos sapos, em «trólaró» constante.
A vida do amanho das terras, do trabalhador rural, é
duríssima - sempre o foi.
Há trinta e alguns anos atrás, a noite era bem
diferente na nossa terra.
O trabalho iniciava-se noite alta - pelas três horas da
madrugada - e prolongava-se para além do pôr-do-sol.
A Benfeita era despertada pelo chamamento, de porta em
porta, dos componentes do «rancho» que iam iniciar o trabalho, pela
fresca, no coração da noite, evitando o desgaste maior, que o calor
solar imporia, dia nascido.
A graça dos comentários dos «chamadores» juntava-se
à contestação, mal humorada e sonolenta, dos despertados do sono
retemperador de forças.
O troar, nas calçadas, das cardas das botas dos homens
e das brochas das tamancas das mulheres, junto ao falatório dos grupos
que se iam formando, rua ou quelho abaixo, até ao ponto de concentração
e partida para a jornada, acabavam por despertar os de sono mais pesado.
A partir daí havia vida na Benfeita, na Serra.
O luar cheio, pleno, iluminava como se fosse de dia,
toda a aldeia e toda a Serra que a envolve.
Víamos perfeitamente, serra acima, pelo caminho para o
Pai das Donas, qual carreiro de formigas, a longa fila de jovens,
rapagões e mocetonas, pujantes e alegres - ouvíamos os seus cantares.
Pesando, embora, o desumano do espectáculo a que se
assistia - pelo esforço desalmado despendido, era maravilhoso,
indiscritível.
A polifonia dos sons que escutávamos era de uma beleza
invulgar - melodiosa, ritmada, única.
O caminho para a floresta era longo, cansativo, e os
sons iam-se perdendo, enfraquecidos pelas quebradas dos caminhos.
Mas - outros sons nos chegavam - o chiar do rodado dos
carros de bois invadia, então, a noite. Eram - o Eduardo Pinheiro, o
José Antunes, o «Baralha» - os carreiros, igualmente madrugadores,
falando aos animais: Anda lá «castanho»... Anda lá «galante»...
Os «monstros de força», puxando certos, lá galgavam
as encostas, levando o carro e o pesado carrego ao destino.
Um vozeirão, na «estrada nova», chamava a nossa
atenção, era António Francisco Nunes - o «Péssimo» - despertando os
filhos para o trabalho e, instantes volvidos, o ruído do rodado da sua
galera, no macadame da estrada, esfumava-se a caminho da «peneda lisa»,
de Coimbra, do «mundo».
O tremeluzir de uma lanterna alertava-nos, também, para
o que se passava na «levada das almotaçarias» - a tia Rosa do
«Fartura» ia tapar a água para regar uns «mimos» numa calhada
à boiça.
E, de novo, voltávamos a enxergar, descendo do Pai das
Donas, pinhal abaixo, o alvejar das pesadas e longas pranchas de madeira,
à cabeça das robustas moçoilas.
Acompanhando, pelo serpenteado do caminho, a marcha
encosta abaixo, víamos depois claramente o «rancho» descendo da «Fonte
das Moscas» para o Areal, e logo em seguida - como estralejar de foguetes
- ouviam-se as pancadas fortes da queda das pesadas pranchas, no solo, na
«estrada nova», onde grandes camiões as viriam buscar.
Tudo isto, relembramos, se passava na noite, muito antes
do toque das «Ave-marias», ao romper do dia.
Não se pense, porém que ao chegar às dez ou onze
horas, transportados todos os «carregos» contratados, esta gente ia
descansar - por já ganho o dia - não! Encetavam outras tarefas, para o
agregado familiar ou «ao dia fora», iam «arrancar» batatas,
«apanhar» milho, vindimar, acarretar e pisar os cachos, tratar dos gados
e muitas outras tarefas estafantes, arrasantes.
Admitir que ficaram ricos com tanto trabalho - tanto
sacrifício - é puro engano. Continuam pobres, como sempre o foram.
Conhecemo-los a todos, precocemente envelhecidos,
alquebrados, gastos.
São estes os verdadeiros escravizados do nosso povo - os
trabalhadores rurais - merecendo largamente, que se lhes proporcione uma
velhice confortável, bem merecida.
Meditemos bem nisto, todos nós.
JOSÉ MACEDO |