HISTÓRIAS  DA  NOSSA  TERRA

Memória dos sentidos

Os sons e os cheiros de antigamente

Por: VIVALDO QUARESMA

Quando eu chegava à Benfeita por alturas das férias grandes, nos finais dos anos cinquenta, sentia de imediato um choque nos meus sentidos e, mesmo antes de chegar à casa dos meus avós, já os meus ouvidos e o meu nariz davam sinais de reconhecerem o local onde me encontrava e a que eu já me havia habituado, por força do hábito.

O ferreiro malhando o ferroAs badaladas dos sinos da igreja, quando assinalavam as horas do dia e da noite, ou chamavam os devotos para a celebração da missa, ou anunciavam a morte de alguém, ouviam-se muito para lá dos limites da aldeia; mas, as batidas fortes e frequentes dos martelos dos ferreiros, malhando o ferro sobre enormes bigornas de aço, também se sobrepunham aos restantes sons. E é claro que, nos dias de festa, o estalejar dos foguetes dominava as atenções auditivas dos habitantes da nossa aldeia e das mais próximas.

Para além destas ocasiões que não eram propriamente um deleite para os meus tímpanos, o dia-a-dia da Benfeita apresentava outras formas sonoras igualmente expressivas mas de menor intensidade, que não passavam despercebidas, e que eu conhecia perfeitamente, como: os galos e as galinhas cacarejando ruidosamente ou o canto interminável das cigarras; os cães ladrando continuamente; as mulheres que conversavam muito alto, distantes umas das outras, ou cantarolavam enquanto tratavam da terra ou lavavam a roupa na ribeira; os gritos das mães que chamavam pelos seus filhos ou da algazarra dos miúdos que brincavam livremente nas ruas ou junto à ribeira; as pessoas nas suas actividades diárias, trabalhando, cumprimentando-se, conversando ou discutindo, com o seu sotaque e expressões características do lugar; o ruído dos tamancos de madeira, chancas e tairocas, das rodas das carroças e dos cascos dos animais que ecoavam no empedrado das ruas estreitas; as serras e os serrotes e os machados de quem cortava lenha para fazer lume, para alimentar fogões, fornos e lareiras; o piar estridente dos melros, corvos, milhafres e outras aves que rodopiavam nos céus por entre os montes; o barulho dos badalos e chocalhos dos animais e o balir das cabras e das ovelhas e, por vezes, os guinchos de agonia dos porcos, em dias de matança...

Tudo isto tinha uma presença contínua na vida da aldeia, do nascer ao pôr-do-sol e, ao anoitecer, era o coaxar das enormes rãs junto à ribeira, os grilos, os assobios das corujas do mato e, sempre, os cães. Por vezes, o vento rugindo nos pinheirais vizinhos ou uivando ameaçadoramente por debaixo da porta da rua despertavam em mim uma vontade enorme de me recolher na cozinha e gozar o calorzinho da lareira, e prestar mais atenção aos acordes do bandolim do meu avô, à luz do candeeiro a petróleo. Estes eram os sons que eu ouvia com mais frequência, lá na terra!

E os cheiros? As chaminés fumegantes das cozinhas das casas, os fornos e as lareiras espalhavam pelo povoado um cheiro intenso e adocicado, característico das pinhas, da caruma e da madeira dos pinhais, ao que se misturava um forte aroma dos fumeiros de enchidos e da broa de milho, e que se embrenhava em tudo e em todo o lado, no cabelo, no corpo, na roupa, na casa, nas ruas, em toda a aldeia!

Porém, juntamente com o bom cheiro surgia o mau, em quase todo o lado. Era o pivete que se libertava dos excrementos dos animais (cães, galinhas, cabras, bois, cavalos, etc.) que conspurcavam as ruas da Benfeita ou emanava das lojas, pequenas divisões onde se encontravam os animais (coelhos, porcos, patos, etc.), ou dos pátios das casas cujo chão, coberto de mato e de caruma, exalava um fedor pestilento.

Dentro de casa era o cheiro a petróleo queimado dos candeeiros de iluminação e dos fogareiros e das velas; do fumo da lenha que ardia no chão de terra da cozinha e da "bubrage" (beberagem) dos animais que continuamente era cozinhada numa enorme panela de ferro com três pés, suspensa do tecto negro por uma corrente de ferro que servia para controlar a sua proximidade com o lume da fogueira e onde se deitava, na água fervente, os produtos da terra (toda a espécie de fruta, legumes, farelo e restos da cozinha).

Cheirinho das floresO cheirinho da fruta fresca, das flores do campo e das ervas aromáticas, do queijo, do presunto e dos enchidos, conseguiam fazer-me esquecer, por momentos, todos os "ataques" à minha pituitária sensível, nesta terra onde até o sabor da água que íamos buscar à fonte era diferente! O meu avô dizia, a brincar (creio eu), que era das rãs. Mas, se não era das rãs, de alguma coisa teria de ser, com certeza! Havia, também, uma arca com especiarias na cozinha, sobre a qual eu gostava de me deitar para sentir o cheiro que dela saía, a colorau, louro, alho, piri-piri e a tripa seca para enchidos.

Mas havia, ainda, outros cheirinhos que deliciavam o meu olfacto, como: o das águas da ribeira, misturado com o cheirinho da hortelã e de outras ervas que por lá havia; o da broa de milho a sair quentinha do forno; o cheiro do pinhal nas tardes de Agosto; o cheiro da roupa quando era passada com o ferro de carvão e borrifada com "àgüínha de cheiro"; os cozinhados da minha avó, onde se incluía o azeite quente de fritar as filhoses e o da canela que ela sàbiamente polvilhava entre os dedos para fazer desenhos e risquinhos no arroz-doce e na tapioca; o cheiro da palha e do feno da palheira onde se guardava a comida dos animais e o cheiro da serradura de pinho que, às vezes, se espalhava no chão da cozinha para absorver líquidos ou gorduras.

Cheiro mauOs cheiros da aldeia deixaram em mim uma marca para toda a vida; mas, na altura, não me pareciam ser tão fortes quanto hoje possa imaginar. Na verdade, naquele tempo, ainda não havia saneamento básico e a "casinha" (local para onde eu corria quando tinha uma dor de barriga), era no fundo do quintal. Lá dentro, havia uma espécie de "trono" em madeira com uma tampa, por baixo da qual existia um buraco arredondado. Tinha sido construído sobre uma cova escavada na terra com, mais ou menos, metro e meio de profundidade e um metro de diâmetro. As tábuas de madeira das paredes da "casinha" eram desencostadas umas das outras, o que permitia o arejamento natural do local, mas contribuía para o mau cheiro e a proliferação de moscas nas imediações. Houve uma altura em que abriram uma estrada nova, do largo da Oliveira à Praça, a que deram o nome de rua António Nunes Leitão. Esta rua dividiu o quintal do meu avô em duas partes, tendo ficado a parte da "casinha" no outro lado da rua. A partir de então, sempre que alguém a queria utilizar tinha de atravessar a rua. À noite, utilizávamos os penicos dentro de casa, que tínhamos de ir despejar logo pela manhã.

Os bons cheiros e os maus cheiros da minha infância, na Benfeita, eram muito intensos. Os excrementos, sejam humanos ou de animais, sob a forma de caganitas, poias ou bostas, cheiram sempre mal e sempre foram uma ameaça para o ambiente. Uma aldeia sem saneamento, com pocilgas e currais quase dentro de casa, é natural que cheirasse mal a quem viesse da cidade; mas, o amor à terra e às pessoas que nela viviam, e a inevitabilidade da situação, face à ausência de outras infra-estruturas, rapidamente faziam com que os seus habitantes e visitantes se habituassem a essas condições e delas até sentissem saudades, quando longe.

Moral da história: "Saudade", pode ser uma palavra perigosa e comprometedora pois poder-se-á dizer que "Quem, alguma vez, viveu no meio do lixo, mais cedo ou mais tarde, dele, sente saudade!". E, saudade, é uma palavra que só deveria estar associada a boas recordações!

Vivaldo Quaresma
Março 2015