Conto completo extraído do livro
"FIGURAS DE GESSO"
Histórias contemporâneas - 4ª Edição (on-line) |
Os
Três Mosqueteiros |
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Transcrito e anotado por Vivaldo Quaresma
Site da Benfeita 2011 |
I
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Na margem esquerda do Mondego, subúrbios de Coimbra, ainda hoje existe a famosa
Lapa, denominada "dos poetas", desde que os rimadores dos
tempos áureos de Castilho, ali foram em alegre convívio
descantar, nas liras de oiro, esperanças da mocidade.
A cavaleiro[1] dessa
deliciosa estância, serpeia a estrada
marginal por entre verduras e pomares, e perfilada, como
quem saúda os transeuntes, ressalta num ângulo da
estrada um pobríssimo pardieiro de dois andares,
deslavado dos temporais e ameaçando ruína. Da porta
central do casebre pende um ramo de loureiro e por cima da
verga oscila uma tabuleta, com este letreiro: «Flor do
Mondego - comes e bebes».
É noite, mas o luar é puríssimo
de uma transparência casta. No interior da locanda[2] vai
grande azáfama. De envolta[3] com o tinir dos pratos,
ouvem-se os gemidos da viola e os requebros do fado. Como
é Domingo, a taberna está repleta de caixeiros, de
artistas, de operárias e de estudantes. Ali fraternizam e
pactuam na mais sincera democracia os futuros doutores e
os futuros verdeais[4].
Através da porta meio
aberta, distinguem-se perfeitamente os vultos, uns
sentados, outros em pé, sinistramente iluminados por um
candeeiro de folha, suspenso do tecto.
- Mais vinho! - berra um estudante.
- Salte uma desfeita[5] com ovos
- grita o companheiro, assestando o monóculo petulante
sobre uma formosa moçoila que servia às mesas,
saracoteando os quadris.
- Hurras por ela! - exclama
um terceiro, de copo em punho, erguendo o braço.
- De pé, de pé - rugem os
circunstantes em coro, numa exclamação unânime - Viva
Jesuína!
Jesuína merecia, com efeito,
estas saudações calorosas. Nos arredores da cidade não
havia por aqueles tempos um palmo de cara que lhe levasse
as lampas[6].
Alta de linhas, ancha[7]
de formas, rubra de cores, cabelos acetinadas, fartos e
negros, rosto oval de formosos contornos bíblicos, a
filha da taberneira filtrava tentações diabólicas nos
olhos do mais pudico. A saia curta e ligeira roçando no
artelho, a chinela aberta mostrando meio pé, o lenço de
ramagens vivas despenhado sobre as espáduas como cascata
de flores, realçava a beleza máscula daquela mulher de
vinte e quatro anos que, segundo era fama, tinha deixado
muito lobo sem ceia. Morriam por ela os estudantes do seu
tempo, mas as predileções de Jesuína, se algumas tinha,
eram ainda desconhecidas.
Entretanto corria a ceia
ruidosa e animada, repleta de discursos e gargalhadas, ao
som plangente das violas e das canções. Mas quem fazia
as honras da festa, e quem por isso atraía as atenções
dos comensais, eram os três estudantes que, num ângulo
da pequena quadra, improvisavam ditos e pilhérias,
beliscando a modéstia de Jesuína que se furtava,
esquiva, ao chuveiro de galanteios em que a envolviam de
todos os lados.
- Sabem? - interrompeu um dos
estudantes, inclinando-se para os companheiros - se neste momento o comissário
de John Bull entrasse aqui em procura da camisa do homem
feliz, é possível que fizesse negócio.
E, como percebesse que
não era compreendido, contou:
«De um certo John Bull se afirma que, para enriquecer
o seu museu de variedades, mandara procurar por toda
a parte a camisa dum homem feliz. O emissário saiu
logo em demanda do objecto apetecido, dirigindo-se
primeiramente às classes mais abastadas.»
«Procurou de preferência os
capitalistas, os homens da alta finança, os lordes que
malbaratam milhões, os potentados que possuem bairros
inteiros em Londres e minas de oiro na América, os
galanteadores de princesas e rainhas, os sultões, os
reis, os bispos, o papa, todos os entes superiores na
escala social, desde o régulo africano que cinge os rins
com a tanga de algodão, até ao czar de todas as Rússias
que se rebuça em preciosos mantos de púrpura e peles.
Mas a camisa procurada não aparecia a despeito de todas
as diligências.»
«O agente de John Bull
desceu então às camadas inferiores. Entrando, ao cabo de
longas canseiras, numa taberna povoada de maltrapilhos e
larápios, notou com indizível satisfação a cara
risonha de um Gavroche[8]
que, sentado a um canto da espelunca, se embebedava com
mau vinho e nada mais fazia, durante meia hora, que beber
e cantar. Dirigiu-se a ele.
- Diz-me cá, bom rapaz, tens
alguma coisa, que te incomode?
- Nada.
- Tens fome?
- Não.
- Tens sede?
- Menos.
- És então um homem feliz!
- Felicíssimo.
- Vou fazer-te uma proposta.
- Ouvirei.
- Vende-me a tua camisa. Pede o que quiseres.
O garoto levantou-se dum
pulo, desabotoou a jaqueta e mostrou o peito nu. Não
tinha camisa!»
«Em conclusão - rematou o
moralista - os poderosos não têm ventura e os miseráveis
não têm camisa. O emissário de John Bull não chegou a
fazer negócio, mas, se viesse hoje aqui, é possível que
nos entendêssemos, porque, deixem lá falar quem fala, a
felicidade está no prazer e em nada mais. O meu homem é
o sábio Epicuro[9].»
Os outros não responderam.
Continuaram a comer e a rir.
Pelo fim da noite, a mãe de
Jesuína cabeceava com sono, sentada num mocho atrás do
mostrador, os fregueses tinham desaparecido à formiga[10],
e apenas permaneciam abancados, bebericando e galhofando,
os três mosqueteiros de capa e batina, conhecidos
respectivamente pelos nomes de Sebastião, Silveira e Ovídio.
Sebastião era um homem
feito, barba cerrada, cara larga, feições burguesas e
maneiras bruscas. Traçava a capa com desprezo, aborrecia
os livros, amava a taberna e insultava os lentes. O seu
ideal era um casamento rico.
Silveira era um petulante de
monóculo e bigodes encerados. Fazia folhetins para os
jornais, compunha comédias, vendia necrológios, recitava
poesias ao piano e frequentava lupanares e alfurjas[11].
Aspirava à glória fácil, acreditava na felicidade pelo
prazer e julgava trazer vestida a camisa que John Bull[12]
andava a procurar pelo mundo.
Ovídio, pelo contrário, tímido
como uma donzela, muito loiro e muito clorótico[13],
fazia versos à Soares de Passos[14] e comovia-se quando
recitava o Noivado do Sepulcro[15]. Para ele o último
grau da suprema ventura seria o amor correspondido.
Eram companheiros e faziam
vida comum, os três. Raras vezes tinham dinheiro, mas
nunca faltavam às festas da boémia Coimbrã. Toda a
gente os designava pelo nome romanesco de "Os três
mosqueteiros da vida airada".
Destes alucinados, que se
diziam discípulos de Byron[16]
e de Nerval[17],
havia por aquele tempo larguíssima cópia na Lusa-Atenas;[18]
encontravam-se à noite pelas tabernas, pelos bilhares,
pelos alcouces[19],
por todas as mansões do vício. Dormiam na cama, enquanto
os estudiosos estavam nas aulas.
Frequentar a cervejaria
manhosa e a tasca infamada era o tic gentil da época.
Por ali estroinaram e macularam as vestiduras académicas,
sujeitos que ao depois foram ministros, conselheiros,
directores gerais e bispos, ao passo que também por ali
estagnaram, na crápula, outros menos felizes, a quem
Minerva[20]
cravejou de reprovações e o futuro cerrou as portas, com tédio.
Estavam os três meditando
filosoficamente na melhor maneira de saldar contas
com Jesuína, sem o dispêndio de um real, operação
delicada de que sempre se encarregava o epicurista
Silveira, quando a proprietária da locanda principiou
a enumerar artigo por artigo, decilitro por decilitro,
as parcelas da ceia devorada. Um horror! A soma transcendia
as raias do verossímil. A verba do conhaque representava
o preço duma orgia. O próprio Sebastião estava pasmado;
o Silveira trauteava com estudada serenidade uma ária
desconsolada e triste, enquanto o louro Ovídio, fingindo
de abstracto, andava de um para outro lado descrevendo
diagonais, com as mãos cruzadas sobre os rins. Chegara,
enfim, o pavoroso quarto de hora de Rabelais[21].
A
situação, porém, era crítica e carecia de um desfecho
qualquer. Então o loiro Ovídio estaca de repente, bate
na testa, leva a mão ao peito, murmura ao ouvido de
Sebastião algumas palavras em surdina, mete-lhe
furtivamente nas mãos o relógio de prata e continua a
passear abstracto.
Estavam salvos. Momentos
depois os três desciam a estrada, capas ao ombro e
cabelos ao vento, repetindo por entre chanças[22]
e motetos[23]
a conhecida trova popular:
Amores de um estudante
Não duram mais que uma hora.
Toca o sino, vai para a aula,
Vem as férias, vai-se embora.
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II
O Silveira, ao cabo de dez
anos da mais desenfreada libertinagem, dissipado o património
e inutilizado para as rudes lutas do trabalho, queimou os
últimos livros num auto de fé, à porta do último lente
que o reprovou no último exame, e foi refugiar-se na
capital, onde logo lhe aproveitaram a audácia. Escreve
artigos de fundo, folhetins e comédias e explora
literariamente o mau gosto indígena.
Ovídio, esse ingénuo
imberbe de louros cabelos cendrados e olheiras fundas,
Amadis de todas as Orianas[24]
e menestrel de todas as Lauras, desenganado e indignado
por não achar na terra o amor platónico, a fantasia mística
e - alma afinada pelos sons da sua - levantou o vôo
rasteiro, como a ave ferida na asa, e foi pousar nos
pendores da serra, onde nasceu, e donde se carteia em
copiosa e plangente correspondência, na razão de duas
vezes por semana, com o feliz Sebastião, o saudoso
companheiro das noitadas, que não voltam.
Quanto a Sebastião, viu
dispersar os companheiros, e como tivesse interrompido
relações com a família, deixou-se ficar dentro da capa
e batina, à espera de que uma volta do destino o fixasse
definitivamente num emprego ou numa cadeia. E o facto é
que o destino, tão volúvel e tão caprichoso, não se
esqueceu do aventureiro.
Num belo dia, a Vénus da
Lapa dos Esteios[25],
herda inesperadamente a grande fortuna de um velhote usurário,
seu parente remoto, falecido sem testamento, e dias depois
também inesperadamente o sorna do Sebastião recebe por
esposa a filha da taberneira. Foi a sua última extravagância.
Quando, alguns anos depois,
me foi permitida a honra de jantar em casa da SrªDª.Jesuína,
a mulher de Sebastião era ainda a mesma rapariga sadia
e espadaúda de outros tempos. O mesmo olhar ígneo
e faiscante, a antiga musculatura aparatosa, o mesmo
requebro na voz arrastada e pretensiosa, sem que a
artificial cultura feita à pressa, nem a máscara nova
que lhe puseram, pudessem esconder os primitivos defeitos
de uma educação que não chegou a completar-se.
A tesoura da modista não
conseguira fixar a linha da elegância espontânea naquele
organismo talhado pela natureza para os rudes tratos
do campo e da taberna. O que fizera apenas foi reconstruir
um absurdo e um aleijão sobre as ruínas dum formoso
tipo camponês.
Apesar disso, a mulher de Sebastião revelava-se afável
e obsequiadora, repartindo-se em requintes de cortesania
cerimoniosa, como quem se empenha em aparentar distinções
estudadas.
O jantar entrou pela noite adiante, e como não houvesse
partida naquela noite, os comensais foram saindo à
formiga, deixando-me só com os donos da casa, em conversação
íntima, na confortável sala do fogão.
Era no Inverno, sentia-se
cair a chuva lá fora nas pedras da calçada e o vento
rufava nos vidros, sacudindo ligeiramente os estores
de seda apanhados em pregas.
Estava-se bem ali, defronte do lume vivo, com as solas
dos sapatos beijadas pelo calor, as pernas estendidas
familiarmente e o corpo afofado nas rugas moles da
poltrona.
Algumas palavras amáveis
da dona da casa tinham-me posto inteiramente à vontade.
Sebastião pegara das fábulas de La Fontaine distraidamente
e relia a passagem em que o lobo, reparando na coleira
do cão, faz o elogio da vida livre.
Dª.Jesuína, peneirando
nos dedos fulgidos de anéis, os berloques da corrente
do relógio, languidamente recostada na cadeira e iluminada
em cheio pelo clarão do brasido crepitante, exibia
com vaidade parlapatona[26]
as farfalhudas pantufas carmesim.
- Esta fábula - interveio o amigo Sebastião, alçando
os olhos e soprando por entre os espessos cabelos
do bigode negro, o fumo do charuto - fez-me lembrar
agora, mal sabes quem?
E depois duma pausa:
- O Silveira e o Ovídio;
pobres e desamparados, são como os lobos dos montes...
Olhei então para Dª.Jesuína
e não tive coragem de perguntar quem é que naquele
momento representava o papel do cão de fabula.
- Recordo-os - prosseguiu
Sebastião, porque são dois corações de oiro e cuido
que são infelizes.
E dizendo isto com o livro
sobre o joelho, cadenciava as sílabas de um modo singular
e dolorido.
- Oh! Muito infelizes! - atalhou de afogadilho Dª.Jesuína,
cascalhando[27]
sarcasticamente. - Muito infelizes, um a galantear
sopeiras e a fazer versos de pé quebrado[28],
às seresmas[29]
da sua terra, e o outro, em Lisboa, a pregar calotes[30]
a quem lhe estende a mão e a fazer comédias para as
actrizes de meia-tigela. Muito infelizes, benza-os
Deus!
Em resposta ao motejo, o
marido limitou-se a encolher os ombros e a sorrir para mim
desconsoladamente, como os imbecis.
Compreendi tudo: aquele
mimoso par amava-se como o cão e o gato. Sebastião era
efectivamente o rafeiro da fábula, andava bem nutrido e nédio,
mas trazia a coleira ao pescoço.
- Desculpe os meus nervos, acudiu em seguida, reprimindo-se,
a mulher de Sebastião. - Aborreço os vadios e os pelintras.
O Silveira não tem onde caia morto e finge de lorde;
o outro, queixa-se de que ninguém o compreende e,
como todos os importunos imagina, por ser poeta, que
toda a gente há-de governar-se com cantigas.
Não tinha já que duvidar.
A Jesuína de outros tempos doutorara-se em positivismo
desde que lhe morreu o tio rico. Era uma mulher prática;
em menos de cinco anos de abastança e vestidos de
cauda, chegara à perfeição de compreender nitidamente
o velho anexim popular «diz-me quanto tens e dir-te-ei
quanto vales». O seu dinheiro era uma superioridade
que ela explorava e, à sua perspicácia de mulher,
não escaparia por certo a idéia de que possuía agora
um marido, unicamente porque tivera o dinheiro suficiente
para o comprar. O seu homem era o lacaio a quem ela
pagava soldada e sentava à mesa.
Quando a excelente e pomposa
SrªDª.Jesuína, ao cabo do serão, se retirou da sala,
estendendo-me generosamente dois dedos da mão direita,
Sebastião largou o livro, veio sentar-se ao meu lado, em
frente do lume, e poisando a sua mão no meu joelho,
desabafou:
- Sabes que não sou um homem positivamente feliz?
- Adivinhei-o.
- Resultado fatal dos casamentos por dinheiro - moralizou o marido de Jesuína
tristemente. - Se são elas que trazem o dote, nós somos
os parasitas; se o dote é nosso, elas reclamam com império[31]
a meação no casal.
Uma verdadeira calamidade! Já me lembrei de emigrar para o Brasil. Aí tens o para que
um homem gasta o melhor do seu tempo em busca da pedra filosofal.
Antes vagabundo, como eu era e como são os lobos,
mas livre; libérrimo!
Entretanto o vento deixara de
rufar nas vidraças, o sussurro dos beirais gotejando nos
passeios afrouxara, a noite ia adiantada e eu dispunha-me
a sair, quando em cima, no andar nobre, ouvi ainda retinir
a voz vibrante de Jesuína.
- Pelos modos, tua mulher não
se deita sem tu ires. Desculpa o maçador e adeus.
- Não tem dúvida - replicou
o meu amigo, ajudando-me a vestir o paletó. - Minha
mulher tem os seus aposentos separados, como no paço[32].
- Como? Pois tu não dormes
pelo menos no mesmo quarto?
- Isso foi tempo - tornou Sebastião, meneando a cabeça
volumosa num ar de desconsolo.
- Então tu és mais infeliz
do que eu pensava.
E saí precipitadamente numa
aberta, recordando com tristeza a fábula do rafeiro nédio
e do lobo em liberdade.
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III
Recentemente encontraram-se
por acaso, em Lisboa, os três companheiros da boémia
Coimbrã.
Depois do teatro, foram cear
juntos; era uma recordação de tempos que não voltam.
Sentiam-se bem, repassando na memória as estroinices
passadas. O destino tinha-os dispersado e não lhes fora
propício, é verdade; mas, tornara a juntá-los, e este
encontro feliz era uma compensação a tantos anos de ausência
e a tanta contrariedade sofrida.
Sebastião estava branco de
cabelos e velho. Nas fundas rugas da sua larga cara de
burguês descobriam-se as dedadas do sofrimento. Era rico,
mas não era ditoso - repetia o pobre Sebastião,
inclinado sobre o prato. Fizera um casamento de interesse
e todos os dias lá em casa lhe chamavam parasita!
- A minha idéia fixa é o
Brasil. Um dia pego de um cacete, desanco a mulher e fujo,
como D.João VI, para as terras da banana.
Ah! Como se lembrava com
saudade dos seus tempos de libertino! Que bela profissão,
a de vadio, quando percorria as ruas da baixa e as
casas de malta a farejar, como os cães, encolhido
e merencório[33],
com as botas cambadas[34]
e os pés molhados, sem vintém no bolso, a fugir dos
credores!
- Que tempos, rapazes! - recordava Sebastião, de copo
em punho e guardanapo ao pescoço - que tempos aqueles
em que, por dois patacos, se organizava uma orgia
de sável, na tasca da vesga, onde sempre havia a deliciosa
lampreia, melhor do que o afamado salmão de Holanda.
Lembram-se? Então era eu um Creso[35].
O casamento depois é que foi o diabo. Enfim, coração
ao largo e viva Deus!
O Silveira ainda não
tinha encontrado a verdadeira pedra filosofal, mas
não desesperava de a achar. O prazer até ali experimentado
tinha intermitências dolorosas e a sua felicidade
havia de residir sim, no prazer, mas permanente.
Dava-se deliciosamente na capital, naquela esplêndida
cidade de mármore e de granito, onde verdeja a alface;
mas, instintivamente, repugnava-lhe passar pelas bandas
do Limoeiro[36].
Tivera dificuldades a princípio
- obtemperava o solteirão, esfarripando, com os dentes,
uma asa de perdiz.
- A vida dos bastidores é lazarenta. Entre a ribalta
e as gambiarras aninha-se a podridão, sob a lantejoula
e o trapo. Pagam mal os originais e não apreciam as
dificuldades do trabalho alheio. Os empresários são
uns exploradores, uns larápios incorrigíveis. A última
opereta que escrevi, em belas e inspiradas redondilhas,
dignas de Gil Vicente, caiu desastradamente na primeira
noite e foi retirada de cena. Não me rendeu nem uma
coroa! Desde esse dia quebrei a pena dramática e empunhei
o estadulho[37]
político. Foi uma inspiração, amigos, uma inspiração
feliz. Sou actualmente redactor político de um jornal
subsidiado pelo governo. Jornal sem subsídio é gazeta
que morre à nascença. Gazetas para o povo que não
sabe ler, é papel perdido na mão de quatro milhões
de analfabetos. O governo, como vocês sabem, é generoso,
e só quer a prosperidade do país. Arranjei-me soberbamente,
porque o meio presta-se a estas aventuras. Quem é
tolo que não o seja. No centro, passo por jacobino
e faccioso; os meus artigos são discutidos no parlamento
e as minhas sátiras, à Juvenal[38],
ferem de morte os adversários, deixando-os a escorrer
sangue.
E, depondo no prato a asa
de perdiz pacientemente esburgada[39]
e deitando vinho no cálice, o Silveira continuava
expansivo. Nas próximas eleições tinha candidatura
certa! De entre os burgos pobres do país era só escolher
o que mais lhe conviesse. Logo que fosse feito deputado,
ficava à bica para conselheiro do tribunal de contas.
O ministro consultava-o e lia-lhe as propostas de
lei antes de as sujeitar à apreciação do parlamento.
Os chavões davam-lhe o braço e os directores-gerais
punham-se em pé quando ele entrava nas Secretarias
de Estado a distribuir memoriais.
- Bela vidança, bela política! - rematava o orador,
saboreando gotas de Colares[40],
com estalidos de língua no céu da boca.
- E tu, Ovídio, que nos dizes? - interrogou Sebastião,
limpando os beiços ao guardanapo.
Ovídio estava sensibilizado,
ou fosse efeito dos vinhos ingeridos ou da comoção
produzida pela narrativa cínica do epicurista.
- Que queres tu que eu diga?
- balbuciou com timidez, fazendo-se escarlate como dantes.
E, descascando uma laranja, contou o romance da sua vida:
«Quando depus aos pés de
Minerva[41]
o meu último compêndio e o meu último beijo de
despedida, regressei a lares[42],
sem vintém no bolso e algumas reprovações na folha de
serviço. Meu pai tinha morrido e minha mãe esperava por
mim para acabar nos meus braços.»
«Sem meios de fortuna, nem esperança de os haver, tratei de me casar, como quem se
dispõe para o suicídio. Eu era um loiro ainda fresco e
as mulheres gostam dos loiros. Lancei-me, pois, na esteira
dos D.Juans anónimos e amei às cegas, sem peso, conta
nem medida, quantas mulheres belas passavam no meu
caminho. Matava assim o tempo aborrecido da aldeia.»
«A primeira foi uma
rapariguita morena que dava pelo nome poético de Maria.
Morava num rés-do-chão modesto, em companhia duma pobre
família, tão numerosa como desgraçada.»
«Marido e mulher amavam-se e
queriam-se com tais extremos que em menos de doze anos de
lícita e abençoada união contavam, mercê de Deus, nada
menos de nove filhos, gordanchudos[43]
e nédios[44]
como tortulhos[45].
Este casal prolífico teria sido pesado a oiro, no tempo
de D.João III, quando se tratara da colonização do
Brasil; em poucos anos, meia dúzia de famílias, como
esta, daria prole suficiente para povoar todas as terras
de Santa Cruz[46].»
«As nove crianças, descalças
e cobertas de andrajos, traziam a vizinhança em perpétua
revolta. Espojados na poeira da rua, assobiavam, berravam,
gritavam, descompunham e atiravam pedradas aos
transeuntes. Uns vivos diabretes, que desde logo chamaram
a minha atenção. E, todavia, a pequenada fazia as delícias
do feliz casal.»
«Quem tomava conta da ninhada
era a enjeitada, a formosa Maria, criança de quinze anos,
espigadita e morena, garrida no seu vestuário de aldeã selvagem.
Não sei porquê, principiei a interessar-me por aquela
criança, tão pobre e tão infeliz, sem pai nem mãe
e maltratada de estranhos. O amor entrava pela porta
da compaixão.»
«Numa bela manhã de Verão,
ao romper da alva, bateram à porta do casebre, duramente.
Eu estava defronte na minha alta janela virada ao
nascente, a retocar um madrigal. Abriu-se a porta
num repelão e no interior ressoou a voz do comendador:
- Acima, que é alto dia!»
«Oh! Meu Deus, que visão
dantesca! Vocês não imaginam o que eu vi! A colónia
dormia toda sobre a mesma esteira lançada ao comprido e
coberta por farrapos de várias cores e tamanhos. A
locanda, invadida pelos feixes da luz hilariante da
madrugada, dava aos olhos o aspecto de uma grande canastra
nupcial, dentro da qual se moviam em todos os sentidos
pernas e braços nus, cabeças desgrenhadas, cabeças de
todos os tamanhos, fragmentos de carne num pandemónio
funambulesco. Nunca os meus olhos tinham presenciado cena igual.»
«Lembro-me, como se fosse
hoje, quando a claridade penetrou no antro, os pequenos
grunhiram estremunhados, esfregando os olhos grudados
pelo sono e arranhando as melenas. Depois, tudo debandou
à voz de "leva, arriba!" e lá no fundo,
meu Deus! - no último plano, lobrigo, como a Eva no
paraíso, a formosa criança, a virgem de olhos pretos,
rasgados e coruscantes[47],
a Vénus de Cós[48]
a emergir da penumbra, como a visão duma glória!»
«Os cabelos pendem-lhe em anéis flutuantes pelos contornos alvos do colo, serpeando por
aqui e por aí num deslumbramento de reflexos de mármore
e de cetim, e a camisa em desalinho cinge-lhe o tronco
divino, deixando transparecer as linhas mais salientes
daquele prodígio de plástica.»
«Desde então reconheci por
meu mal que o meu destino estava indissoluvelmente preso
aos encantos daquele abandonado ser, cuja situação tanto
se parecia com a minha. A formosura é a serpente do Éden,
não há quem lhe resista, se é realçada pelo pudor -
casta sensitiva, que mais atrai quanto mais se furta ao
nosso contacto.»
«Quando lhe falei pela
primeira vez, Maria ruborizou-se; mas, familiarizando-se
gradualmente, contou-me os pormenores da sua existência
infeliz.»
«As suas palavras ingénuas e sentidas, referindo a morte da mãe,
as dificuldades da sua vida presente, a impossibilidade de
viver naquela miserável condição a que fora condenada,
ao passo que ficaram por muito tempo retinindo nos meus
ouvidos, como um eco simpático, marcaram desde logo entre
mim e ela uma linha de respeito que eu não seria capaz de
ultrapassar.»
«Não se riam, amigos. Bem sei
que S.Francisco de Salles[49]
passou de moda. Os degenerados filhos do século, em meio
de tanta prosa, que os assoberba e anula, não empreendem
já os seráficos arroubos[50]
de Fénelon[51],
de João da Cruz[52],
de S.Tereza[53],
de Guion[54],
de Chantal[55],
de Kempis[56],
de Gerson[57];
mas que querem?»
«Eu nesse tempo fazia madrigais e adorava
com igual devoção todos os Cristos pendentes de todos os
altares, porque tristemente formosos e divinos eles
representavam, à minha consciência e à minha imaginação,
o que há de mais belo, de mais ideal e de mais adorável no mundo.»
«Vou concluir. Maria, a
formosa morena de olhos pretos, que eu destinava para
esposa, a meiga e ingénua criança, que não abandonou a
cabeceira do meu leito durante as longas crises de uma
penosa doença, que me teve às portas da morte, aquela
criança simpática, que eu via nas alucinações da
febre, velando ao meu lado, como um anjo custódio, bateu
as asas, e deixou-me numa triste manhã de Outono, quando
eu tracejava para lhe oferecer o mais inspirado e sentido
poema da minha musa agradecida. Tinha fugido com o meu
criado, um serrano grosseiro e bestial!»
«Pensei que no coração da mulher poderia encontrar a pedra filosofal da
felicidade, mas saíram-me errados os processos da
alquimia. Na taça das blandícias daquela Circe[58]
algum demónio tinha espremido o veneno da hipocrisia -
devorei-o, desfeito no açúcar do primeiro beijo e
quando, nos estertores do desengano, erguia as mãos para
a minha Vénus Urânia[59],
apenas enxerguei à cabeceira o espectro da Polymnia[60],
de Sócrates. Ah!
Bom Aristipo[61],
tu é que tinhas razão: - Vivamus, dum licet esse,
bene...[62]»
Chegado a este ponto, o loiro
Ovídio, pálido de comoção, reenchia nervosamente o cálice,
enquanto Silveira e Sebastião se entreolhavam espantados.
Ovídio estaria realmente ébrio, ou desfrutava-os?
- Na última conquista - continuou tranquilamente - fui mais
feliz... Quem sabe? Talvez não fosse, casei-me. É como
lhes digo, casei-me - repetia o loiro bacharel, depondo o
cálice e intervalando as palavras com graves dentadas nas
carnes rubras de um pêssego - Casei-me.
«A minha última
Ofélia[63]
é hoje minha mulher. Lá nos pendores da serra, onde o
acaso depôs o meu ninho, encontrei uma Beatriz, pobríssima,
como todas as Beatrizes, mas dedicada como Faustina. Andei
largos meses a fazer-lhe autópsia ao coração e era ela
quem espontaneamente se chegava à anatomia.»
«Parece incrível a soma de sacrifícios que Beatriz tem feito por mim. Podia lá
imaginar, depois do que se passou com a outra, que da
podridão da espécie pudesse brotar o lírio do amor? Caí
das nuvens, amigos.»
«Por mim abandonou o pai e a mãe e, quando nos primeiros anos as dificuldades da vida
assaltaram o nosso lar, foi ela quem se encarregou de
conjurar a tempestade, amparando-me no resvaladoiro,
empenhando, para que nada me faltasse, os maiores esforços,
sorrindo sempre com a resignação da mártir».
Neste momento, o desolado
Sebastião, mirando ainda o fundo do prato vazio,
recompunha mentalmente, como num sonho, as peripécias da
sua vida de casado, e chegava à pungente conclusão de
que mais vale um casamento de amor, embora pobre, do que
esse desgraçado casamento de interesse, cujas consequências
estava sofrendo.
E levantando o busto resignado cravou os olhos em Ovídio, como quem procura
uma informação precisa.
- És, então, um homem feliz?
- Não - respondeu Ovídio, sorrindo tristemente. A
minha Beatriz é pobre e formosa, dois grandes defeitos
que fazem o meu tormento. Quando em minha casa faltar
o pão já sei a sorte que me espera: a sua beleza irá
procurá-lo à casa alheia... suprimindo-me. É a história
de todas as mulheres bonitas e o último capítulo de
todos os casamentos de amor. Não creiam que me iludo.
Sebastião abaixou a cabeça,
voltando a mirar distraidamente o fundo do prato vazio, no
qual, figuras caprichosas de pássaros e amantes se
beijavam em posições grotescas. E, a vez de Silveira
chegou finalmente.
- Pelo que vejo, e oiço, estou defronte de dois grandes
infelizes. Sou eu acaso a única pessoa com quem neste
momento poderia fazer negócio o comissário de John
Bull. E, todavia, o negócio não se faz, porque a minha
camisa de hoje há-de fatalmente ser-me necessária
amanhã, para me resguardar do frio em Rilhafoles[64]
ou no Limoeiro. O desfecho das aventuras, em que a
fatalidade do destino me lançou, está previsto desde
o principio do mundo, e não falha - ou a loucura ou
a cadeia.
E visto que ninguém é
contente da sua sorte, porquanto o casamento por dinheiro
é um desastre certo, por amor é um perigo iminente e o
celibato um aleijão social, vejamos se é possível
encontrar a pedra filosofal no esquecimento, que entrevejo
no fundo coralino das taças espumantes... Viva o prazer!
E todos três levaram os
copos à boca, sofregamente, como quem se vinga.
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