JOSÉ  SIMÕES  DIAS

Conto completo extraído do livro "FIGURAS DE GESSO"
Histórias contemporâneas - 4ª Edição (on-line)

Os Três Mosqueteiros

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Transcrito e anotado por Vivaldo Quaresma
Site da Benfeita 2011

I

Na margem esquerda do Mondego, subúrbios de Coimbra, ainda hoje existe a famosa Lapa, denominada "dos poetas", desde que os rimadores dos tempos áureos de Castilho, ali foram em alegre convívio descantar, nas liras de oiro, esperanças da mocidade.

A cavaleiro[1] dessa deliciosa estância, serpeia a estrada marginal por entre verduras e pomares, e perfilada, como quem saúda os transeuntes, ressalta num ângulo da estrada um pobríssimo pardieiro de dois andares, deslavado dos temporais e ameaçando ruína. Da porta central do casebre pende um ramo de loureiro e por cima da verga oscila uma tabuleta, com este letreiro: «Flor do Mondego - comes e bebes».

É noite, mas o luar é puríssimo de uma transparência casta. No interior da locanda[2] vai grande azáfama. De envolta[3] com o tinir dos pratos, ouvem-se os gemidos da viola e os requebros do fado. Como é Domingo, a taberna está repleta de caixeiros, de artistas, de operárias e de estudantes. Ali fraternizam e pactuam na mais sincera democracia os futuros doutores e os futuros verdeais[4].

Através da porta meio aberta, distinguem-se perfeitamente os vultos, uns sentados, outros em pé, sinistramente iluminados por um candeeiro de folha, suspenso do tecto.
- Mais vinho! - berra um estudante.
- Salte uma desfeita[5] com ovos - grita o companheiro, assestando o monóculo petulante sobre uma formosa moçoila que servia às mesas, saracoteando os quadris.
- Hurras por ela! - exclama um terceiro, de copo em punho, erguendo o braço.
- De pé, de pé - rugem os circunstantes em coro, numa exclamação unânime - Viva Jesuína!

Jesuína merecia, com efeito, estas saudações calorosas. Nos arredores da cidade não havia por aqueles tempos um palmo de cara que lhe levasse as lampas[6]. Alta de linhas, ancha[7] de formas, rubra de cores, cabelos acetinadas, fartos e negros, rosto oval de formosos contornos bíblicos, a filha da taberneira filtrava tentações diabólicas nos olhos do mais pudico. A saia curta e ligeira roçando no artelho, a chinela aberta mostrando meio pé, o lenço de ramagens vivas despenhado sobre as espáduas como cascata de flores, realçava a beleza máscula daquela mulher de vinte e quatro anos que, segundo era fama, tinha deixado muito lobo sem ceia. Morriam por ela os estudantes do seu tempo, mas as predileções de Jesuína, se algumas tinha, eram ainda desconhecidas.

Entretanto corria a ceia ruidosa e animada, repleta de discursos e gargalhadas, ao som plangente das violas e das canções. Mas quem fazia as honras da festa, e quem por isso atraía as atenções dos comensais, eram os três estudantes que, num ângulo da pequena quadra, improvisavam ditos e pilhérias, beliscando a modéstia de Jesuína que se furtava, esquiva, ao chuveiro de galanteios em que a envolviam de todos os lados.
- Sabem? - interrompeu um dos estudantes, inclinando-se para os companheiros - se neste momento o comissário de John Bull entrasse aqui em procura da camisa do homem feliz, é possível que fizesse negócio.

E, como percebesse que não era compreendido, contou:
«De um certo John Bull se afirma que, para enriquecer o seu museu de variedades, mandara procurar por toda a parte a camisa dum homem feliz. O emissário saiu logo em demanda do objecto apetecido, dirigindo-se primeiramente às classes mais abastadas.»

«Procurou de preferência os capitalistas, os homens da alta finança, os lordes que malbaratam milhões, os potentados que possuem bairros inteiros em Londres e minas de oiro na América, os galanteadores de princesas e rainhas, os sultões, os reis, os bispos, o papa, todos os entes superiores na escala social, desde o régulo africano que cinge os rins com a tanga de algodão, até ao czar de todas as Rússias que se rebuça em preciosos mantos de púrpura e peles. Mas a camisa procurada não aparecia a despeito de todas as diligências.»

«O agente de John Bull desceu então às camadas inferiores. Entrando, ao cabo de longas canseiras, numa taberna povoada de maltrapilhos e larápios, notou com indizível satisfação a cara risonha de um Gavroche[8] que, sentado a um canto da espelunca, se embebedava com mau vinho e nada mais fazia, durante meia hora, que beber e cantar. Dirigiu-se a ele.
- Diz-me cá, bom rapaz, tens alguma coisa, que te incomode?
- Nada.
- Tens fome?
- Não.
- Tens sede?
- Menos.
- És então um homem feliz!
- Felicíssimo.
- Vou fazer-te uma proposta.
- Ouvirei.
- Vende-me a tua camisa. Pede o que quiseres.
O garoto levantou-se dum pulo, desabotoou a jaqueta e mostrou o peito nu. Não tinha camisa!»

«Em conclusão - rematou o moralista - os poderosos não têm ventura e os miseráveis não têm camisa. O emissário de John Bull não chegou a fazer negócio, mas, se viesse hoje aqui, é possível que nos entendêssemos, porque, deixem lá falar quem fala, a felicidade está no prazer e em nada mais. O meu homem é o sábio Epicuro[9]

Os outros não responderam. Continuaram a comer e a rir.
Pelo fim da noite, a mãe de Jesuína cabeceava com sono, sentada num mocho atrás do mostrador, os fregueses tinham desaparecido à formiga[10], e apenas permaneciam abancados, bebericando e galhofando, os três mosqueteiros de capa e batina, conhecidos respectivamente pelos nomes de Sebastião, Silveira e Ovídio.

Sebastião era um homem feito, barba cerrada, cara larga, feições burguesas e maneiras bruscas. Traçava a capa com desprezo, aborrecia os livros, amava a taberna e insultava os lentes. O seu ideal era um casamento rico.

Silveira era um petulante de monóculo e bigodes encerados. Fazia folhetins para os jornais, compunha comédias, vendia necrológios, recitava poesias ao piano e frequentava lupanares e alfurjas[11]. Aspirava à glória fácil, acreditava na felicidade pelo prazer e julgava trazer vestida a camisa que John Bull[12] andava a procurar pelo mundo.

Ovídio, pelo contrário, tímido como uma donzela, muito loiro e muito clorótico[13], fazia versos à Soares de Passos[14] e comovia-se quando recitava o Noivado do Sepulcro[15]. Para ele o último grau da suprema ventura seria o amor correspondido.

Eram companheiros e faziam vida comum, os três. Raras vezes tinham dinheiro, mas nunca faltavam às festas da boémia Coimbrã. Toda a gente os designava pelo nome romanesco de "Os três mosqueteiros da vida airada".

Destes alucinados, que se diziam discípulos de Byron[16] e de Nerval[17], havia por aquele tempo larguíssima cópia na Lusa-Atenas;[18] encontravam-se à noite pelas tabernas, pelos bilhares, pelos alcouces[19], por todas as mansões do vício. Dormiam na cama, enquanto os estudiosos estavam nas aulas.

Frequentar a cervejaria manhosa e a tasca infamada era o tic gentil da época. Por ali estroinaram e macularam as vestiduras académicas, sujeitos que ao depois foram ministros, conselheiros, directores gerais e bispos, ao passo que também por ali estagnaram, na crápula, outros menos felizes, a quem Minerva[20] cravejou de reprovações e o futuro cerrou as portas, com tédio.

Estavam os três meditando filosoficamente na melhor maneira de saldar contas com Jesuína, sem o dispêndio de um real, operação delicada de que sempre se encarregava o epicurista Silveira, quando a proprietária da locanda principiou a enumerar artigo por artigo, decilitro por decilitro, as parcelas da ceia devorada. Um horror! A soma transcendia as raias do verossímil. A verba do conhaque representava o preço duma orgia. O próprio Sebastião estava pasmado; o Silveira trauteava com estudada serenidade uma ária desconsolada e triste, enquanto o louro Ovídio, fingindo de abstracto, andava de um para outro lado descrevendo diagonais, com as mãos cruzadas sobre os rins. Chegara, enfim, o pavoroso quarto de hora de Rabelais[21].

A situação, porém, era crítica e carecia de um desfecho qualquer. Então o loiro Ovídio estaca de repente, bate na testa, leva a mão ao peito, murmura ao ouvido de Sebastião algumas palavras em surdina, mete-lhe furtivamente nas mãos o relógio de prata e continua a passear abstracto.

Estavam salvos. Momentos depois os três desciam a estrada, capas ao ombro e cabelos ao vento, repetindo por entre chanças[22] e motetos[23] a conhecida trova popular:

Amores de um estudante
Não duram mais que uma hora.
Toca o sino, vai para a aula,
Vem as férias, vai-se embora.

II

O Silveira, ao cabo de dez anos da mais desenfreada libertinagem, dissipado o património e inutilizado para as rudes lutas do trabalho, queimou os últimos livros num auto de fé, à porta do último lente que o reprovou no último exame, e foi refugiar-se na capital, onde logo lhe aproveitaram a audácia. Escreve artigos de fundo, folhetins e comédias e explora literariamente o mau gosto indígena.

Ovídio, esse ingénuo imberbe de louros cabelos cendrados e olheiras fundas, Amadis de todas as Orianas[24] e menestrel de todas as Lauras, desenganado e indignado por não achar na terra o amor platónico, a fantasia mística e - alma afinada pelos sons da sua - levantou o vôo rasteiro, como a ave ferida na asa, e foi pousar nos pendores da serra, onde nasceu, e donde se carteia em copiosa e plangente correspondência, na razão de duas vezes por semana, com o feliz Sebastião, o saudoso companheiro das noitadas, que não voltam.

Quanto a Sebastião, viu dispersar os companheiros, e como tivesse interrompido relações com a família, deixou-se ficar dentro da capa e batina, à espera de que uma volta do destino o fixasse definitivamente num emprego ou numa cadeia. E o facto é que o destino, tão volúvel e tão caprichoso, não se esqueceu do aventureiro.

Num belo dia, a Vénus da Lapa dos Esteios[25], herda inesperadamente a grande fortuna de um velhote usurário, seu parente remoto, falecido sem testamento, e dias depois também inesperadamente o sorna do Sebastião recebe por esposa a filha da taberneira. Foi a sua última extravagância.

Quando, alguns anos depois, me foi permitida a honra de jantar em casa da SrªDª.Jesuína, a mulher de Sebastião era ainda a mesma rapariga sadia e espadaúda de outros tempos. O mesmo olhar ígneo e faiscante, a antiga musculatura aparatosa, o mesmo requebro na voz arrastada e pretensiosa, sem que a artificial cultura feita à pressa, nem a máscara nova que lhe puseram, pudessem esconder os primitivos defeitos de uma educação que não chegou a completar-se.

A tesoura da modista não conseguira fixar a linha da elegância espontânea naquele organismo talhado pela natureza para os rudes tratos do campo e da taberna. O que fizera apenas foi reconstruir um absurdo e um aleijão sobre as ruínas dum formoso tipo camponês.
Apesar disso, a mulher de Sebastião revelava-se afável e obsequiadora, repartindo-se em requintes de cortesania cerimoniosa, como quem se empenha em aparentar distinções estudadas.
O jantar entrou pela noite adiante, e como não houvesse partida naquela noite, os comensais foram saindo à formiga, deixando-me só com os donos da casa, em conversação íntima, na confortável sala do fogão.

Era no Inverno, sentia-se cair a chuva lá fora nas pedras da calçada e o vento rufava nos vidros, sacudindo ligeiramente os estores de seda apanhados em pregas.
Estava-se bem ali, defronte do lume vivo, com as solas dos sapatos beijadas pelo calor, as pernas estendidas familiarmente e o corpo afofado nas rugas moles da poltrona.

Algumas palavras amáveis da dona da casa tinham-me posto inteiramente à vontade. Sebastião pegara das fábulas de La Fontaine distraidamente e relia a passagem em que o lobo, reparando na coleira do cão, faz o elogio da vida livre.

Dª.Jesuína, peneirando nos dedos fulgidos de anéis, os berloques da corrente do relógio, languidamente recostada na cadeira e iluminada em cheio pelo clarão do brasido crepitante, exibia com vaidade parlapatona[26] as farfalhudas pantufas carmesim.
- Esta fábula - interveio o amigo Sebastião, alçando os olhos e soprando por entre os espessos cabelos do bigode negro, o fumo do charuto - fez-me lembrar agora, mal sabes quem?

E depois duma pausa:
- O Silveira e o Ovídio; pobres e desamparados, são como os lobos dos montes...

Olhei então para Dª.Jesuína e não tive coragem de perguntar quem é que naquele momento representava o papel do cão de fabula.
- Recordo-os - prosseguiu Sebastião, porque são dois corações de oiro e cuido que são infelizes.

E dizendo isto com o livro sobre o joelho, cadenciava as sílabas de um modo singular e dolorido.
- Oh! Muito infelizes! - atalhou de afogadilho Dª.Jesuína, cascalhando[27] sarcasticamente. - Muito infelizes, um a galantear sopeiras e a fazer versos de pé quebrado[28], às seresmas[29] da sua terra, e o outro, em Lisboa, a pregar calotes[30] a quem lhe estende a mão e a fazer comédias para as actrizes de meia-tigela. Muito infelizes, benza-os Deus!

Em resposta ao motejo, o marido limitou-se a encolher os ombros e a sorrir para mim desconsoladamente, como os imbecis.

Compreendi tudo: aquele mimoso par amava-se como o cão e o gato. Sebastião era efectivamente o rafeiro da fábula, andava bem nutrido e nédio, mas trazia a coleira ao pescoço.
- Desculpe os meus nervos, acudiu em seguida, reprimindo-se, a mulher de Sebastião. - Aborreço os vadios e os pelintras. O Silveira não tem onde caia morto e finge de lorde; o outro, queixa-se de que ninguém o compreende e, como todos os importunos imagina, por ser poeta, que toda a gente há-de governar-se com cantigas.

Não tinha já que duvidar. A Jesuína de outros tempos doutorara-se em positivismo desde que lhe morreu o tio rico. Era uma mulher prática; em menos de cinco anos de abastança e vestidos de cauda, chegara à perfeição de compreender nitidamente o velho anexim popular «diz-me quanto tens e dir-te-ei quanto vales». O seu dinheiro era uma superioridade que ela explorava e, à sua perspicácia de mulher, não escaparia por certo a idéia de que possuía agora um marido, unicamente porque tivera o dinheiro suficiente para o comprar. O seu homem era o lacaio a quem ela pagava soldada e sentava à mesa.

Quando a excelente e pomposa SrªDª.Jesuína, ao cabo do serão, se retirou da sala, estendendo-me generosamente dois dedos da mão direita, Sebastião largou o livro, veio sentar-se ao meu lado, em frente do lume, e poisando a sua mão no meu joelho, desabafou:
- Sabes que não sou um homem positivamente feliz?
- Adivinhei-o.
- Resultado fatal dos casamentos por dinheiro - moralizou o marido de Jesuína tristemente. - Se são elas que trazem o dote, nós somos os parasitas; se o dote é nosso, elas reclamam com império[31] a meação no casal.
Uma verdadeira calamidade! Já me lembrei de emigrar para o Brasil. Aí tens o para que um homem gasta o melhor do seu tempo em busca da pedra filosofal.
Antes vagabundo, como eu era e como são os lobos, mas livre; libérrimo!

Entretanto o vento deixara de rufar nas vidraças, o sussurro dos beirais gotejando nos passeios afrouxara, a noite ia adiantada e eu dispunha-me a sair, quando em cima, no andar nobre, ouvi ainda retinir a voz vibrante de Jesuína.
- Pelos modos, tua mulher não se deita sem tu ires. Desculpa o maçador e adeus.
- Não tem dúvida - replicou o meu amigo, ajudando-me a vestir o paletó. - Minha mulher tem os seus aposentos separados, como no paço[32].
- Como? Pois tu não dormes pelo menos no mesmo quarto?
- Isso foi tempo - tornou Sebastião, meneando a cabeça volumosa num ar de desconsolo.
- Então tu és mais infeliz do que eu pensava.

E saí precipitadamente numa aberta, recordando com tristeza a fábula do rafeiro nédio e do lobo em liberdade.

III

Recentemente encontraram-se por acaso, em Lisboa, os três companheiros da boémia Coimbrã.

Depois do teatro, foram cear juntos; era uma recordação de tempos que não voltam. Sentiam-se bem, repassando na memória as estroinices passadas. O destino tinha-os dispersado e não lhes fora propício, é verdade; mas, tornara a juntá-los, e este encontro feliz era uma compensação a tantos anos de ausência e a tanta contrariedade sofrida.

Sebastião estava branco de cabelos e velho. Nas fundas rugas da sua larga cara de burguês descobriam-se as dedadas do sofrimento. Era rico, mas não era ditoso - repetia o pobre Sebastião, inclinado sobre o prato. Fizera um casamento de interesse e todos os dias lá em casa lhe chamavam parasita!
- A minha idéia fixa é o Brasil. Um dia pego de um cacete, desanco a mulher e fujo, como D.João VI, para as terras da banana.

Ah! Como se lembrava com saudade dos seus tempos de libertino! Que bela profissão, a de vadio, quando percorria as ruas da baixa e as casas de malta a farejar, como os cães, encolhido e merencório[33], com as botas cambadas[34] e os pés molhados, sem vintém no bolso, a fugir dos credores!
- Que tempos, rapazes! - recordava Sebastião, de copo em punho e guardanapo ao pescoço - que tempos aqueles em que, por dois patacos, se organizava uma orgia de sável, na tasca da vesga, onde sempre havia a deliciosa lampreia, melhor do que o afamado salmão de Holanda. Lembram-se? Então era eu um Creso[35]. O casamento depois é que foi o diabo. Enfim, coração ao largo e viva Deus!

O Silveira ainda não tinha encontrado a verdadeira pedra filosofal, mas não desesperava de a achar. O prazer até ali experimentado tinha intermitências dolorosas e a sua felicidade havia de residir sim, no prazer, mas permanente.
Dava-se deliciosamente na capital, naquela esplêndida cidade de mármore e de granito, onde verdeja a alface; mas, instintivamente, repugnava-lhe passar pelas bandas do Limoeiro[36].

Tivera dificuldades a princípio - obtemperava o solteirão, esfarripando, com os dentes, uma asa de perdiz.
- A vida dos bastidores é lazarenta. Entre a ribalta e as gambiarras aninha-se a podridão, sob a lantejoula e o trapo. Pagam mal os originais e não apreciam as dificuldades do trabalho alheio. Os empresários são uns exploradores, uns larápios incorrigíveis. A última opereta que escrevi, em belas e inspiradas redondilhas, dignas de Gil Vicente, caiu desastradamente na primeira noite e foi retirada de cena. Não me rendeu nem uma coroa! Desde esse dia quebrei a pena dramática e empunhei o estadulho[37] político. Foi uma inspiração, amigos, uma inspiração feliz. Sou actualmente redactor político de um jornal subsidiado pelo governo. Jornal sem subsídio é gazeta que morre à nascença. Gazetas para o povo que não sabe ler, é papel perdido na mão de quatro milhões de analfabetos. O governo, como vocês sabem, é generoso, e só quer a prosperidade do país. Arranjei-me soberbamente, porque o meio presta-se a estas aventuras. Quem é tolo que não o seja. No centro, passo por jacobino e faccioso; os meus artigos são discutidos no parlamento e as minhas sátiras, à Juvenal[38], ferem de morte os adversários, deixando-os a escorrer sangue.

E, depondo no prato a asa de perdiz pacientemente esburgada[39] e deitando vinho no cálice, o Silveira continuava expansivo. Nas próximas eleições tinha candidatura certa! De entre os burgos pobres do país era só escolher o que mais lhe conviesse. Logo que fosse feito deputado, ficava à bica para conselheiro do tribunal de contas. O ministro consultava-o e lia-lhe as propostas de lei antes de as sujeitar à apreciação do parlamento. Os chavões davam-lhe o braço e os directores-gerais punham-se em pé quando ele entrava nas Secretarias de Estado a distribuir memoriais.
- Bela vidança, bela política! - rematava o orador, saboreando gotas de Colares[40], com estalidos de língua no céu da boca.
- E tu, Ovídio, que nos dizes? - interrogou Sebastião, limpando os beiços ao guardanapo.

Ovídio estava sensibilizado, ou fosse efeito dos vinhos ingeridos ou da comoção produzida pela narrativa cínica do epicurista.
- Que queres tu que eu diga? - balbuciou com timidez, fazendo-se escarlate como dantes. E, descascando uma laranja, contou o romance da sua vida:

«Quando depus aos pés de Minerva[41] o meu último compêndio e o meu último beijo de despedida, regressei a lares[42], sem vintém no bolso e algumas reprovações na folha de serviço. Meu pai tinha morrido e minha mãe esperava por mim para acabar nos meus braços.»

«Sem meios de fortuna, nem esperança de os haver, tratei de me casar, como quem se dispõe para o suicídio. Eu era um loiro ainda fresco e as mulheres gostam dos loiros. Lancei-me, pois, na esteira dos D.Juans anónimos e amei às cegas, sem peso, conta nem medida, quantas mulheres belas passavam no meu caminho. Matava assim o tempo aborrecido da aldeia.»

«A primeira foi uma rapariguita morena que dava pelo nome poético de Maria. Morava num rés-do-chão modesto, em companhia duma pobre família, tão numerosa como desgraçada.»

«Marido e mulher amavam-se e queriam-se com tais extremos que em menos de doze anos de lícita e abençoada união contavam, mercê de Deus, nada menos de nove filhos, gordanchudos[43] e nédios[44] como tortulhos[45]. Este casal prolífico teria sido pesado a oiro, no tempo de D.João III, quando se tratara da colonização do Brasil; em poucos anos, meia dúzia de famílias, como esta, daria prole suficiente para povoar todas as terras de Santa Cruz[46]

«As nove crianças, descalças e cobertas de andrajos, traziam a vizinhança em perpétua revolta. Espojados na poeira da rua, assobiavam, berravam, gritavam, descompunham e atiravam pedradas aos transeuntes. Uns vivos diabretes, que desde logo chamaram a minha atenção. E, todavia, a pequenada fazia as delícias do feliz casal.»

«Quem tomava conta da ninhada era a enjeitada, a formosa Maria, criança de quinze anos, espigadita e morena, garrida no seu vestuário de aldeã selvagem.
Não sei porquê, principiei a interessar-me por aquela criança, tão pobre e tão infeliz, sem pai nem mãe e maltratada de estranhos. O amor entrava pela porta da compaixão.»

«Numa bela manhã de Verão, ao romper da alva, bateram à porta do casebre, duramente. Eu estava defronte na minha alta janela virada ao nascente, a retocar um madrigal. Abriu-se a porta num repelão e no interior ressoou a voz do comendador: - Acima, que é alto dia!»

«Oh! Meu Deus, que visão dantesca! Vocês não imaginam o que eu vi! A colónia dormia toda sobre a mesma esteira lançada ao comprido e coberta por farrapos de várias cores e tamanhos. A locanda, invadida pelos feixes da luz hilariante da madrugada, dava aos olhos o aspecto de uma grande canastra nupcial, dentro da qual se moviam em todos os sentidos pernas e braços nus, cabeças desgrenhadas, cabeças de todos os tamanhos, fragmentos de carne num pandemónio funambulesco. Nunca os meus olhos tinham presenciado cena igual.»

«Lembro-me, como se fosse hoje, quando a claridade penetrou no antro, os pequenos grunhiram estremunhados, esfregando os olhos grudados pelo sono e arranhando as melenas. Depois, tudo debandou à voz de "leva, arriba!" e lá no fundo, meu Deus! - no último plano, lobrigo, como a Eva no paraíso, a formosa criança, a virgem de olhos pretos, rasgados e coruscantes[47], a Vénus de Cós[48] a emergir da penumbra, como a visão duma glória!»

«Os cabelos pendem-lhe em anéis flutuantes pelos contornos alvos do colo, serpeando por aqui e por aí num deslumbramento de reflexos de mármore e de cetim, e a camisa em desalinho cinge-lhe o tronco divino, deixando transparecer as linhas mais salientes daquele prodígio de plástica.»

«Desde então reconheci por meu mal que o meu destino estava indissoluvelmente preso aos encantos daquele abandonado ser, cuja situação tanto se parecia com a minha. A formosura é a serpente do Éden, não há quem lhe resista, se é realçada pelo pudor - casta sensitiva, que mais atrai quanto mais se furta ao nosso contacto.»

«Quando lhe falei pela primeira vez, Maria ruborizou-se; mas, familiarizando-se gradualmente, contou-me os pormenores da sua existência infeliz.»

«As suas palavras ingénuas e sentidas, referindo a morte da mãe, as dificuldades da sua vida presente, a impossibilidade de viver naquela miserável condição a que fora condenada, ao passo que ficaram por muito tempo retinindo nos meus ouvidos, como um eco simpático, marcaram desde logo entre mim e ela uma linha de respeito que eu não seria capaz de ultrapassar.»

«Não se riam, amigos. Bem sei que S.Francisco de Salles[49] passou de moda. Os degenerados filhos do século, em meio de tanta prosa, que os assoberba e anula, não empreendem já os seráficos arroubos[50] de Fénelon[51], de João da Cruz[52], de S.Tereza[53], de Guion[54], de Chantal[55], de Kempis[56], de Gerson[57]; mas que querem?»

«Eu nesse tempo fazia madrigais e adorava com igual devoção todos os Cristos pendentes de todos os altares, porque tristemente formosos e divinos eles representavam, à minha consciência e à minha imaginação, o que há de mais belo, de mais ideal e de mais adorável no mundo.»

«Vou concluir. Maria, a formosa morena de olhos pretos, que eu destinava para esposa, a meiga e ingénua criança, que não abandonou a cabeceira do meu leito durante as longas crises de uma penosa doença, que me teve às portas da morte, aquela criança simpática, que eu via nas alucinações da febre, velando ao meu lado, como um anjo custódio, bateu as asas, e deixou-me numa triste manhã de Outono, quando eu tracejava para lhe oferecer o mais inspirado e sentido poema da minha musa agradecida. Tinha fugido com o meu criado, um serrano grosseiro e bestial!»

«Pensei que no coração da mulher poderia encontrar a pedra filosofal da felicidade, mas saíram-me errados os processos da alquimia. Na taça das blandícias daquela Circe[58] algum demónio tinha espremido o veneno da hipocrisia - devorei-o, desfeito no açúcar do primeiro beijo e quando, nos estertores do desengano, erguia as mãos para a minha Vénus Urânia[59], apenas enxerguei à cabeceira o espectro da Polymnia[60], de Sócrates. Ah! Bom Aristipo[61], tu é que tinhas razão: - Vivamus, dum licet esse, bene...[62]»

Chegado a este ponto, o loiro Ovídio, pálido de comoção, reenchia nervosamente o cálice, enquanto Silveira e Sebastião se entreolhavam espantados. Ovídio estaria realmente ébrio, ou desfrutava-os?
- Na última conquista - continuou tranquilamente - fui mais feliz... Quem sabe? Talvez não fosse, casei-me. É como lhes digo, casei-me - repetia o loiro bacharel, depondo o cálice e intervalando as palavras com graves dentadas nas carnes rubras de um pêssego - Casei-me.

«A minha última Ofélia[63] é hoje minha mulher. Lá nos pendores da serra, onde o acaso depôs o meu ninho, encontrei uma Beatriz, pobríssima, como todas as Beatrizes, mas dedicada como Faustina. Andei largos meses a fazer-lhe autópsia ao coração e era ela quem espontaneamente se chegava à anatomia.»

«Parece incrível a soma de sacrifícios que Beatriz tem feito por mim. Podia lá imaginar, depois do que se passou com a outra, que da podridão da espécie pudesse brotar o lírio do amor? Caí das nuvens, amigos.»

«Por mim abandonou o pai e a mãe e, quando nos primeiros anos as dificuldades da vida assaltaram o nosso lar, foi ela quem se encarregou de conjurar a tempestade, amparando-me no resvaladoiro, empenhando, para que nada me faltasse, os maiores esforços, sorrindo sempre com a resignação da mártir».

Neste momento, o desolado Sebastião, mirando ainda o fundo do prato vazio, recompunha mentalmente, como num sonho, as peripécias da sua vida de casado, e chegava à pungente conclusão de que mais vale um casamento de amor, embora pobre, do que esse desgraçado casamento de interesse, cujas consequências estava sofrendo.
E levantando o busto resignado cravou os olhos em Ovídio, como quem procura uma informação precisa.
- És, então, um homem feliz?
- Não - respondeu Ovídio, sorrindo tristemente. A minha Beatriz é pobre e formosa, dois grandes defeitos que fazem o meu tormento. Quando em minha casa faltar o pão já sei a sorte que me espera: a sua beleza irá procurá-lo à casa alheia... suprimindo-me. É a história de todas as mulheres bonitas e o último capítulo de todos os casamentos de amor. Não creiam que me iludo.

Sebastião abaixou a cabeça, voltando a mirar distraidamente o fundo do prato vazio, no qual, figuras caprichosas de pássaros e amantes se beijavam em posições grotescas. E, a vez de Silveira chegou finalmente.
- Pelo que vejo, e oiço, estou defronte de dois grandes infelizes. Sou eu acaso a única pessoa com quem neste momento poderia fazer negócio o comissário de John Bull. E, todavia, o negócio não se faz, porque a minha camisa de hoje há-de fatalmente ser-me necessária amanhã, para me resguardar do frio em Rilhafoles[64] ou no Limoeiro. O desfecho das aventuras, em que a fatalidade do destino me lançou, está previsto desde o principio do mundo, e não falha - ou a loucura ou a cadeia.

E visto que ninguém é contente da sua sorte, porquanto o casamento por dinheiro é um desastre certo, por amor é um perigo iminente e o celibato um aleijão social, vejamos se é possível encontrar a pedra filosofal no esquecimento, que entrevejo no fundo coralino das taças espumantes... Viva o prazer!

E todos três levaram os copos à boca, sofregamente, como quem se vinga.

FIM
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