A
MINHA
MULHER
MARIA
HENRIQUETA DE MENEZES E ALBUQUERQUE
O honrado e corajoso editor deste livro quis transcrever nestas
páginas a minha biografia, escrita com favor por um jornalista notável, apóstolo
fervoroso da democracia portuguesa [1].
Sucedeu, porém, que a crítica do meu generoso Plutarco resvalou em elogio
académico - o que me obriga a agradecer a benevolência e a rejeitar o panegírico de
prendas literárias que só a amizade podia atribuir-me. É a razão porque tão formoso
trabalho mal pode caber aqui, à frente de um livro despretencioso e sincero. Também
que lucraria o público com a ociosa notícia de uma existência gasta sobre os
livros, desamparada de protecções e raro alumiada pelos furtivos clarões da alegria
e da fortuna?
Lembrou o meu oficioso biógrafo que o seu biografado nascera a 5
de Fevereiro de 1844 na Benfeita, pequena aldeia beirã; que de 1854 a 1857 estudara Latim em
Pedrógão Grande, pátria de Miguel Leitão d'Andrade; que em 1858 tinha concluído o
curso dos liceus e três anos depois o curso teológico do Seminário de Coimbra; que
desde 1861 até 1868 em que terminou a sua formatura laureada com as primeiras
classificações universitárias, vivera exclusivamente da pena e da palavra, já
escrevendo nos jornais literários daquela época, alheios e seus, já leccionando
particularmente nas horas que os seus estudos académicos lhe deixavam livres; que
por decreto de 30 de Dezembro de 1868 fora nomeado professor proprietário da Cadeira
de Línguas, Economia Rural e Administração Pública, na cidade de
Elvas, donde fora transferido para o Liceu de Viseu em 1871; que a minha democrática
pessoa recebera das mãos do ministro radical Eugénio Montero Rios a comenda de
Izabel a Católica em atenção aos serviços (dizia ele) por mim prestados à
literatura do vizinho reino. Faltou dizer que por igual motivo o Fomento de las
Artes,
de Madrid e a Sociedad Económica Barcelonesa de Amigos del País, me enviaram
o diploma de sócio correspondente.
Vê tu agora, ó doce companheira da minha trabalhosa vida, que
interesse despertaria no público a revelação de sucessos que nem sequer tem o
valor de uma anedota curiosa! Deixemos pois o meu humilde passado e falemos do presente.
Faz hoje quatro anos que o bom Deus de nossos pais nos abrigou sob o mesmo tecto,
ao calor do mesmo lar, velando com as asas do seu infinito amor o santo amor da nossa
pequena família. Escolhi este marco miliário da minha, da nossa existência,
já agora perfumada pelos beijos da nossa estremecida filha, para te oferecer este
livro. Desta forma pago uma dívida, devolvendo-te os melhores versos que tu me
inspiraste e avivo com a lembrança deste dia a gratidão que te devo pelos carinhosos
extremos da tua amizade. Quando lá no futuro os grandes olhos negros da nossa Judith, negros
como duas amoras e castos como a inocência, percorrerem estas páginas escritas dos
dezoito aos vinte e oito anos, lembra-lhe então que os não desvie desdenhosos deste
papel público, onde seu pai glorificou três grandes sentimentos: O amor,
única salvação do indivíduo; a pátria,
única salvação da família; e a liberdade,
única salvação dos povos. Não receies que os meus versos possam turvar a
límpida castidade da sua alma com os intuitos licenciosos que me atribuíram em
Espanha [2] nem com sugestões menos
patrióticas de cujo crime já fui denunciado [3] e muito menos com arrojos de
impiedade tão alheios à minha convicção, barbaramente caluniada [4]. Um livro assim
não é uma inutilidade; contudo creio que serão as Peninsulares os meus
últimos versos. Deixando de poetar fico com um vício de menos, e quem sabe, com uma
saudade de mais? Talvez, porquanto durante os dez anos que transviei pelas veredas do
Parnaso, sempre a benevolência pública me andou generosa tapetando o caminho de
flores. Não só das altas regiões literárias da Península desceram a mim
palavras de conforto, também das últimas camadas sociais vieram consolações ao meu
encontro. Enquanto a Espanha traduzia os meus versos, enaltecendo-os com mais vivo
colorido, o povo das nossas Beiras os assimilava vulgarizando-os em suas toadas,
nos serões, nas romarias e nas sestas, levando-os de porta em porta na voz dos
cegos e mendigos. Por tanto as portas do Éden, se tal se pode chamar aos domínios
da poesia, não me ficam vedadas pela espada flamejante do arcanjo bíblico. Suspendo a
lira voluntariamente. Ser poeta, diz C.Castelo Branco, é querer encravar a roda
teimosa das coisas e ficar com o braço partido. Não vale a pena. No século
presente todo positivo e materialista, o verso que é a linguagem da imaginação tem
de ceder o lugar à prosa que é a linguagem da razão.
Concluo desviando o meu espírito
da realidade externa para o
abismar todo nas profundezas
desse poético e incomparável
amor de família representado
em ti, ó fiel companheira e
santa mãe de minha filha.
27 de Setembro de 1876
J.Simões Dias
Notas:
[1] - Notícia da vida
e escritos de J.Simões Dias, por
Henrique d'Andrade. 1º vol.1870.
[2] - Lit. Portug. en el siglo XIX,
por D.Romero Ortiz, Madrid, 1871. Poetas
líricos portugueses, por D.Luís
Vidart, Madrid, 1874.
[3] - El poeta portugues J.Simões Dias,
artigo da Illustración de Madrid,
1871.
[4] - Nação, Bem Público, Direito,
etc.
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